segunda-feira, outubro 22, 2007

Perra !


Ando meio cansado de usar infindáveis listas de figuras de estilo para descrever o que em mim se sente. Pregadores, freaks, imagens tétricas que iludem o olhar destreinado e afastam quem não vê por entre as linhas.
Fiquei alguns dias sem escrever uma única linha, sem "despejar" nada e o resultado foi conclusivo. Preciso de gritar o que me parece entorpecer. A porta que antes se abria ante os meus pedidos mais profundos e deixava ver mundos imaginários sem fim nem tabus ficou perra. Foi usada continuamente, em silêncio, sem que pensasse que um dia estaria danificada do uso indevido. Todos os dias forcei a entrada e fui ofuscado pelo dilúvio disforme e profano de tantas e tantas imagens silenciadas.
Fito a porta com algum receio de não ser capaz de aceitar o que carrego, de ter de a cuidar para que abra melhor e que feche rapidamente ao meu pedido. Ouço ainda o respirar do monstro que aguarda pacientemente pela minha vinda. Ao seu comando todos os outros recuam e esperam que chegue a sua vez. Ele sabe que o mundo real tem apertado a ferrugem nas dobradiças, que a cada palavra que escrevo dou espaço para me descolar mais uma vez daquilo que me rodeia, ele também sabe que a linha que me separa do seu mundo é fina e que por si só não é uma barreira. Imagino uma linha de giz desenhada no chão para a qual aponto e grito "daqui não passarás!". Tento acreditar que ele respeitará a fronteira e não chamará a sua orde para me arrastar para casa.
Parece-me que um dia fecharei de vez os olhos a este mundo e poderei então deixar-me ir para o lugar de onde surgi.
Não há pressa... o tempo é inevitável e certeiro.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Mais anormalidades




Desmonto a vida em imagens, em pequenas cenas que, para mim, representam acções, sentimentos e palavras. Como uma cor pode sugerir um estado de espírito para muitos, uma pessoa nua e carbonizada num campo deserto de gelo mostram uma amálgama de sentimentos para mim. Vejo as coisas que sinto mas nunca sei aquilo que sinto realmente. A abstracção é contínua e vazia dum sentido lógico, as imagens sucedem-se repetida e teimosamente sem deixar palavra do que me querem dizer. Vejo-as, vivo-as e deixo-as fluir para que saiam, mas ficam.
Vejo um homem costurado, feito de muitos bocados que não são seus. O seu corpo foi irremediavelmente adulterado pelas camadas de pele diferente que compõe a aberração que ele é hoje. Nalguns retalhos a precisão e o cuidado quase cirúrgicos traduzem um carinho especial. Parece que cuida daquele pedaço duma maneira diferente e terrivelmente contrastante com o traçado irregular dos pontos infectados daquilo que não quis por em si por vontade própria. Os osso das canelas e as rótulas estão agora visíveis, mostram um desgaste rastejante por medos e incertezas que o reduziram à prostração. Terá de procurar mais bocados para remendar o que parece irremediável.
Na dor constante que o agonia já não existe manifestação, faz parte dele como a necessidade de respirar ou beber, alerta-o e mantêm-no de guarda dos perigos que só ele percepciona. Cego de realidade caminha sem rumo e sem sonho, caminha porque acha que deve caminhar e vive porque assim se tem proporcionado.
A alma já não habita a carcaça decadente e despersonalizada, observa-o dum plano superior com dó daquela mente sem esperança. Por trás de si arrastam-se fluidos, fios e tubos que se prendem ao novelo que o envolve e vive por ele com impulsos e ruídos metálicos duma máquina que ainda o quer para si.
Há-de cair... chegará finalmente ao fim e será parte doutra manta de retalhos, num outro sítio qualquer.



D.M.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Doi-me o coração


O meu menino está doente. Olhar para ele neste estado corta-me bem fundo no meu ser, faz-me desejar que fique bem instantaneamente ou que de alguma forma eu possa suportar o seu desconforto e dor.
Andava ele tão bem todo este tempo e de repente sou chamado à realidade com a suavidade dum berbequim a perfurar a testa. Afinal o problema não desapareceu, esteve sempre lá escondido e agora ameaça tornar uma comum gripe ou constipação em algo bem mais sério. A cobarde age pelas sombras e fere os anjos que dela não percebem nada. A besta nem sequer dá para ser vista de maneira a nos prevenirmos, ela espera que o anjo esteja desatento e mais debilitado e arma logo das suas.
Gostava de me tornar pequeno, mas tão pequeno que pudesse procurar o âmago da besta e o cortasse fora para sempre, que o expulsasse do código do meu anjinho que precisava era de estar bem e divertir-se.
Hoje tive de tomar medidas mais sérias, assumi uma responsabilidade em prol do conforto e bem estar do meu menino, entristeci e fiquei confuso e ele quando recuperou um bocadinho das suas forças veio ter comigo, sorriu e disse-me que estava com saudades minhas. Completamente desarmado pelo amor e carinho que irradiava do seu sorriso e do seu afago, não fui tão forte como ele e mantive o semblante fechado, porque sou adulto e tenho de pensar nas coisas seriamente.
Dorme, exausto dum dia de médicos e medicamentos e todos os sintomas desagradáveis que ainda passa. Parece que nem foi assim...

Doí-me o coração, mas não deveria ter dor o meu menino.

terça-feira, outubro 02, 2007

Quando a alma escurece


Hoje é um daqueles dias em que não se vislumbra raio de luz cá por dentro. Sinto-me a definhar lentamente, sem que me aperceba, pouco a pouco deixo-me ser devorado e sorrio sempre...
Porque não consigo fazer nenhum sentido, nem me apetece falar do banal, porque estou farto de bradar o que acho correcto, porque ninguém acha que os sonhos são assim tão importantes, deixo o monstro espreitar e deleitar-se na sua demência.


Estou a olhar para dentro... não se ouve nada nem nada se vê. O meu ser esvaziou-se de tudo por não ter mais chão para todas as coisas que procuro fixar. Desloco-me sem tocar no chão inexistente na esperança que os meus olhos se habituem à escuridão e descubram um caminho no vazio. Esfrego os olhos com força e continuamente até que me parece ver uma ténue linha vertical de luz ao longe, muito longe. O silêncio sufoca cada palavra que tento gritar na direcção da luz. Sem distância nem movimento a luz parece aproximar-se e revela um contorno duma porta. Ouço finalmente um som, um ranger raro que ecoa nas paredes invisíveis e gela o peito. Dali surge uma cabeça disforme e negra, apoiada em membros assimétricos numa espécie de corpo curvado. O meu monstro veio ter comigo, deixou-se ver e sentir. Apesar do seu ar repugnante e letal, conforta-me na escuridão e dá-me força para enfrentar mais um dia neste mundo ainda mais feio. Toca-me de leve no ombro e pede para que faça parte de mim para sempre, sem palavras descreve o quão forte ficarei se aceder ao seu desejo, a seriedade e agressividade que farão parte da minha vida se o deixar entrar... Penso por momentos... Tempos inacabáveis acrescentam à pressão que sinto a ceder, ele olha-me com os meus olhos como se soubesse que será inevitável.
Ainda não o deixei entrar, está à porta a espreitar e a decidir até quando lá ficará sem forçar a entrada.