quarta-feira, novembro 09, 2011

Primeiros passos

  Estava absorto pela visão da entrada do supermercado, quando os seus ouvidos foram assaltados pelo silêncio repentino da cessação da moagem do café. O zumbido murmurante das lâmpadas florescentes não era suficiente para preencher o vazio deixado pelo incessante esmagar de grãos torrados da beberagem a que chamavam café naquele sitio. A senhora que atendia ao balcão sentou-se atrás do mesmo a preencher a falta de movimento com os conselhos emocionais desmiolados duma qualquer revista cor-de-rosa.
Virou-se novamente para a janela e foi surpreendido com um pulsar nos ouvidos, dignos duma corrida esgotante e repentina do perseguir dum autocarro. Sentia o coração a rebentar-lhe os tímpanos e ao
fechar os olhos na vã esperança de se recompor assim, pareceu-lhe ouvir mais uma batida. Quase indistinta do seu músculo cardíaco a batida era persistente ao acompanhar a atenção agora a si despendida.Sentia um respirar baixinho como se de um murmúrio se tratasse...

Inevitavelmente os minutos que ali passava à escuta tornaram invisível a tão desejada abertura da porta do supermercado, o tempo arrastava-se para se dar à sua audição atenta.
Algo em si pulsava e vivia escondido até aquele momento. Num brusco movimento, o ser puxou-lhe as pálpebras a abrir e fixou-lhe os olhos no supermercado que agora abria. Com a adrenalina a impulsionar o violento levantar de mesa, saiu do café deixando uma soma demasiado elevada para um "café" sem sequer se importar com o troco, a revista cor-de-rosa também toldou a empregada de qualquer comentário acerca disso.
Os batimentos no peito aumentavam a cada passo que o levava mais perto do seu primeiro objectivo.

Começara...

quarta-feira, outubro 12, 2011

Partes...

A noite escorregou lenta pelos seus olhos. Parecia infinita e disposta a guardar-lhe o prazer da descoberta para sempre nos seus sonhos... olhava a sua obra no embalar metálico de Morfeu e estranhava a impulsividade. Analisava cada passo, cada pormenor até à exaustão. Tinha de ter um objectivo, um caminho a percorrer, uma razão que respondesse à sua desmesurada fome, mas ao mesmo tempo que lhe permitisse crescer e ser mais preciso e consistente...
Frases percorriam-lhe o sono dos justos deixando marcas à sua passagem, deixando pistas, conceitos, valores, pedidos.
O sol ousava despontar no horizonte e trouxe-o de volta à consciência. A visão turva e assoberbada pela luz duma íris ainda demasiado dilatada não lhe impediram de pronunciar as palavras que sobraram do sono - "O todo é feito de partes!".

Não sabia como tal sequência linguística teria feito sentir a sua presença tão marcadamente numa mente desprovida de sensibilidade. Dirigiu-se à cozinha para tomar um bem merecido almoço por entre o trautear irreconhecível duma qualquer melodia alimentada pelo seu ego e o assobiar tão ou mais indistinguível. Estava absorto nos seus pensamentos quando tirou um pão que deveria ter pelo menos uns três dias e colocou-o na mesa. Numa agilidade instintiva, puxou rapidamente uma faca de pão do bloco e começou o árduo trabalho de cortar a forma petrificada que outrora seria o pão. 
Parou de assobiar e sentiu a vibração dos dentes da faca enquanto esta se debatia com a dureza do alimento que teimava em resistir às suas investidas. Fazia um ruído surdo, abafado, que duma forma incompreensível despertava-lhe um certo prazer.
Com os olhos postos no nada, finalizou a sessão de corte e deixou cair o olhar sobre o pão fatiado. "O todo é feito de partes!". Parecia fazer sentido agora... precisava de mostrar que o todo deve ser visto nas suas partes mais básicas, que devem ser educados a olhar com atenção e não perder os detalhes que lhes seriam revelados pelas partes.
Saiu intempestivamente sem tocar em mais nada, saiu ainda com o cheiro da noite impregnado no seu cabelo longo que teimava em lhe cobrir os olhos. Dirigiu-se apressado a um supermercado local que ainda estava fechado, não havia sido cuidadoso nem metódico. Dirigiu-se com um objectivo e não preparou o caminho; serviu-lhe de primeira lição. Parou o impaciente passo atrás de passo quase ritual de tão repetitivo em frente da entrada e colocou ordem no caos. Olhou em volta para uma rua lisa e fria e avistou um café suficientemente perto para ver o supermercado a abrir. Dirigiu-se para lá, abriu um sorriso próprio dum cidadão civilizado e tentou um "bom dia" suficientemente humano para que lhe respondessem.
Vigiava o supermercado enquanto despejava um café horrível para um estômago esmagado pela ansiedade...

Hoje nascia uma nova ordem... a sua.

sexta-feira, julho 08, 2011

O caminho...

A noite envolvia todo o espaço que as luzes fracassavam iluminar, todo o quadro amarelado pintado pela dádiva de Thomas Edison à humanidade carecia de cor... como ele precisava.
Cada passo, ruidoso, esmagava as folhas seca e enregeladas no chão, provocando ecos solitários pelos muros que ladeavam o caminho para o seu próximo encontro. Ouvia-se respirar e agradecia essa dádiva, agradecia o cortar impiedoso do frio nas suas mãos ainda húmidas do despejar da vida que há pouco tirara deste mundo.
O caminho parecia cada vez mais longo, desprovido de destino definido, carecia dum objectivo que alimentasse a fome que teimava em não se saciar.

...

O estalido das folhas congelou o tempo, tudo parou...

...

O caminho era longo, infinito até... uma lição para a sua crescente impaciência?

...

Deteve-se. Voltou no mesmo caminho, mas agora para casa. Tinha de ter um destino, um objectivo, senão seria apenas mais um dos impuros que desprezava.

...

Pensou que a frase que havia ouvido de raspão há muito fazia todo o sentido agora: "O caminho é mais importante que o destino...". Atreveu-se a acabar a frase: "O destino fica no fim do caminho, mas não significa que este tenha encontrado de facto o seu fim!"

Sentia-se orgulhoso e sorridente. Não havia cedido à fome, tinha de controlar os seus impulsos "alimentares".

Amanhã o caminho irá findar temporariamente no destino a determinar...

quinta-feira, junho 30, 2011

Boca seca

Ainda era noite...

A realidade cortou-lhe as pálpebras no efémero encadeamento dum qualquer carro perdido.
Ainda segurava na sua mão esquerda a fria garganta do impuro. A sua mão direita, outrora aquecida pelos fluidos que jorraram abundantemente das entranhas pútridas, jazia gelada e una com os restos ressequidos.

Perdeu um momento para admirar a sua presa, deslumbrou-se com a facilidade com que deu fim à periclitante existência daquela carcaça. Mas este era impuro, merecia... mas não era merecedor dos seus esforços, não era uma presa condigna... mas estava feito, e bem feito!
O turbilhão que o tomara estava agora apaziguado, despido de remorsos e silencioso deliciava-se com a overdose de adrenalina que havia tomado. Não sabia o seu nome, nem porque o conseguiu distinguir dos demais, sabia que apenas que o seu fim era naquele momento. Mirou-o mais uma vez antes de cambalear pelas sombras omnipresentes das ruas nocturnas.
A cada passo que dava, o vento varria-lhe as orelhas com sussurros incompreensíveis. Laminas frias de ar deixavam-lhe a pele castigada, lembravam-lhe da fragilidade da vida, faziam-lhe engolir em seco ao ansiar o próximo encontro.
O vento acompanhou-o até à sua porta, indiferente. Ficou ali parado, inerte a olhar fixamente a porta, à fronteira entre o terreno de caça e o seu abrigo.
...
O vento voltou-lhe a sussurrar... desta vez ele compreendeu.
...
Contornou a casa até ao pátio nas traseiras e lavou as mãos na torneira do jardim. Foi com prazer que acolheu a dor da água gelada nas suas mãos, ainda estava vivo, sentia a dor, a vida só existe se se sentir dor.
Os seus lábios há muito igualaram a boca na secura provocada pelo frio, sabia que cedo sentiria o salivar ao vislumbrar a próxima presa... estava insaciável, a fome não o deixava dormir!
...
Determinado e encorajado pelas sugestões de Éolo, pisou determinado as sombras omnipresentes das ruas nocturnas... Alguém iria deixar de sentir dor ainda naquela noite.

terça-feira, junho 28, 2011

Passeio pelos caminhos da demência



Estava cansado... tinha tido um dia longo e recheado de actividades repetitivas e acéfalas. O seu íntimo ansiava por algo mais, por algo que fizesse o seu coração bater mais depressa, pela adrenalina a encharcar os seus sentidos a atear chamas profanas em cada músculo do seu corpo...

Mas estava tão cansado...

Depois de resistir por mais alguns minutos, despiu a pele do dia-a-dia e recolheu-se no seu leito gelado e só. Havia muito tempo que deixara de sentir o calor de alguém a seu lado, tinha apenas o frio, o frio que o acompanhava teimosamente a cada início de noite e o traia com a chegada do calor do seu corpo ausentando-se para o lado vazio do colechão que recebia, gemendo por vezes, o seu corpo esgotado.

O seu desagrado depressa deu lugar à avalanche que fez sucumbir as suas pálpebras ao peso do sono merecido. Tinha acabado o dia, nada de mais tinha acontecido, estava vazio... as trevas tomaram conta da consciência.

Já dormia profundamente... sentia no interior da sua cabeça o pulsar lento mas poderoso do músculo incessante. Aos seus olhos fechados surgia o caminho, passo a passo, a sair de casa.

Sentia-se particularmente forte naquele momento, os seus dedos pareciam ter-se banhado em metal fundido que lhos queimara conferindo-lhes no entanto a dureza do aço.

Cambaleou pelas ruas doentes de icterícia, silenciosas, despidas de gente. Sentia uma necessidade animal de caçar.

Numa qualquer rua comercial ouviu passos arrastados num beco que guardava nas suas entranhas os desperdícios duma humanidade que já não quer saber. Apressou o seu passo... sem se fazer ouvir, claro! Estava a caçar...

Espreitou o trato imundo que lhe revelou a silhueta de alguém que resolvera arrastar um pobre diabo inconsciente para que fosse consumido na imundice. Atirou-o para o chão com desdém, procurou cada compartimento da sua pele da noite em busca do vil papel. Precisava de satisfazer o animal em si, não o mesmo que fazia caçar, este animal tinha nascido de perfurações com aço que despejavam ilusões para o corpo e o faziam crescer a cada dia.

Este escravo do animal já teria esgotado as suas fontes para ter de despojar um qualquer herbívoro que por ali circulava, de todas as suas posses transaccionáveis.

O bater incessante na cabeça aumentou em volume, força e intensidade. Queria caçar o impuro que fitava com desprezo. Este impuro não caçava para alimentar a sua fome, destruía o que bem lhe apetecesse se lhe pusesse um pouco mais próximo do seu sustento, do seu esteróide de crescimento.

Faltavam apenas 6 segundos...

1...2... Os seus músculos contraíram-se duma forma quase felina antes do golpe final...

3...4...5... Escolhe a sombra para escapar à visão periférica do impuro...

6! Avança num salto sem espaço para qualquer reacção! Com a mão esquerda constritora no seu pescoço, esmaga ruidosamente as suas costas contra a parede!

O impuro sucumbe aos instintos errados de auto preservação agarrando a sua mão que agora sente o colapsar da traqueia... a sua camisola gasta revela o seu abdómen despido, incolor, magro,. Num movimento rápido acaba com a sua triste existência, carrega sobe o seu estomago sentindo o quente rasgar da sua pele... olha-o nos olhos ao ver esvair-se o imundo do seu der, aguarda o seu fim num silêncio forçado enquanto lhe segreda: "Estás livre!"

...

Aguarda enquanto sente o calor a esvair-se com os seus fluidos que agora trocaram o interior do impuro pela rudeza dos seus dedos

...

Inebriado, deixa o seu subconsciente tomar as rédeas do sono e de novo a escuridão se abate ...

...

Ainda dorme... mas está a sorrir...


segunda-feira, maio 09, 2011

Biomassa

Aqueles com espírito, com alma, com algo de especial... estão rodeados por uma amálgama de células e cadeias proteicas despidas de qualquer razão ou visão. Entorpecem-se cada vez mais os sentidos e apercebo-me da voz esvaída da criatura que me habita.


Tenho receio do que me diz. Aparece de repente, ressuscitada sabe-se lá bem porquê tenta abalar-me com a sua visão negra e distorcida do mundo. Mostra-me a biomassa "inteligente" que serpenteia pelos quatro cantos do mundo, a destruir-se em grande escala e a fazer toda a diferença numa escala aterrorizantemente menor. Estas criaturas desenvolveram mecanismos brutais para compensar o vazio a que obriga a vivência em massa. Despem-se de sentidos e enchem-se de coisas, rituais, protocolos, maneirismos, modas e estilos, sons e cores, reflexos e imagens... para além de tudo isso o primata dotado de "inteligência" não consegue, na generalidade, ver o que está a seus pés nem o que o rodeia duma forma tão íntima como faz o ar. O que outrora levou grandes mentes a descobrir, a se interrogar, a valorizar a bela complexidade que nos faz, não passa hoje de um conjunto de movimentos e acções involuntárias que dispensam qualquer reflexão.


Segredas-me a desgraça humana, descascas a pele e mostras a podridão que tomou o lugar da alma. Não acreditava na alma... agora quero acreditar. Tem de haver um objectivo maior, não podemos ser apenas uma fracção infinitamente pequena no ciclo eterno da matéria e dos mundos. Temos mentes, acreditamos (poucos), voamos com a a imaginação e fazemos outros nos seguirem, nos sorrirem. Vemos o que de bom cada um de nós tem e poderá ainda ser, levamos as vidas para a frente com fracções de tempo em que nos sentimos verdadeiramente humanos, únicos, ímpares.


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Depois paro.


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Vejo versões de nós cada vez mas distorcidas, poluídas pelo constante despejar de ilusões que criamos para nós próprios...


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Paro novamente...


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Eu amo! Esse amor que me eleva a um estado de vida, que me faz ver mais longe e mais fundo do que nunca. Esse amor que me segura, defende e mostra-me que afinal o que conta está bem perto, num espaço mais pequeno que o planeta, a ocupar um espaço maior que o universo inteiro. Este amor que me possui e me pertence, lava-me os olhos para ver que este amor tão insignificante perante o mundo e tão vasto como o inimaginável infinito, ilumina com um ponto onde estou a cada segundo. Existem milhões de pontinhos por esse mundo fora, biliões que dissipam a névoa da biomassa irracional que nos é forçada a ver.


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Ainda não parei definitivamente...


Ver-vos-ei muitas órbitas para o futuro...


...


Obrigado meus amores, sei viver por vossa causa.





D.M.