Ainda era noite...
A realidade cortou-lhe as pálpebras no efémero encadeamento dum qualquer carro perdido.
Ainda segurava na sua mão esquerda a fria garganta do impuro. A sua mão direita, outrora aquecida pelos fluidos que jorraram abundantemente das entranhas pútridas, jazia gelada e una com os restos ressequidos.
Perdeu um momento para admirar a sua presa, deslumbrou-se com a facilidade com que deu fim à periclitante existência daquela carcaça. Mas este era impuro, merecia... mas não era merecedor dos seus esforços, não era uma presa condigna... mas estava feito, e bem feito!
O turbilhão que o tomara estava agora apaziguado, despido de remorsos e silencioso deliciava-se com a overdose de adrenalina que havia tomado. Não sabia o seu nome, nem porque o conseguiu distinguir dos demais, sabia que apenas que o seu fim era naquele momento. Mirou-o mais uma vez antes de cambalear pelas sombras omnipresentes das ruas nocturnas.
A cada passo que dava, o vento varria-lhe as orelhas com sussurros incompreensíveis. Laminas frias de ar deixavam-lhe a pele castigada, lembravam-lhe da fragilidade da vida, faziam-lhe engolir em seco ao ansiar o próximo encontro.
O vento acompanhou-o até à sua porta, indiferente. Ficou ali parado, inerte a olhar fixamente a porta, à fronteira entre o terreno de caça e o seu abrigo.
...
O vento voltou-lhe a sussurrar... desta vez ele compreendeu.
...
Contornou a casa até ao pátio nas traseiras e lavou as mãos na torneira do jardim. Foi com prazer que acolheu a dor da água gelada nas suas mãos, ainda estava vivo, sentia a dor, a vida só existe se se sentir dor.
Os seus lábios há muito igualaram a boca na secura provocada pelo frio, sabia que cedo sentiria o salivar ao vislumbrar a próxima presa... estava insaciável, a fome não o deixava dormir!
...
Determinado e encorajado pelas sugestões de Éolo, pisou determinado as sombras omnipresentes das ruas nocturnas... Alguém iria deixar de sentir dor ainda naquela noite.
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