A noite escorregou lenta pelos seus olhos. Parecia infinita e disposta a guardar-lhe o prazer da descoberta para sempre nos seus sonhos... olhava a sua obra no embalar metálico de Morfeu e estranhava a impulsividade. Analisava cada passo, cada pormenor até à exaustão. Tinha de ter um objectivo, um caminho a percorrer, uma razão que respondesse à sua desmesurada fome, mas ao mesmo tempo que lhe permitisse crescer e ser mais preciso e consistente...
Frases percorriam-lhe o sono dos justos deixando marcas à sua passagem, deixando pistas, conceitos, valores, pedidos.
O sol ousava despontar no horizonte e trouxe-o de volta à consciência. A visão turva e assoberbada pela luz duma íris ainda demasiado dilatada não lhe impediram de pronunciar as palavras que sobraram do sono - "O todo é feito de partes!".
Não sabia como tal sequência linguística teria feito sentir a sua presença tão marcadamente numa mente desprovida de sensibilidade. Dirigiu-se à cozinha para tomar um bem merecido almoço por entre o trautear irreconhecível duma qualquer melodia alimentada pelo seu ego e o assobiar tão ou mais indistinguível. Estava absorto nos seus pensamentos quando tirou um pão que deveria ter pelo menos uns três dias e colocou-o na mesa. Numa agilidade instintiva, puxou rapidamente uma faca de pão do bloco e começou o árduo trabalho de cortar a forma petrificada que outrora seria o pão.
Parou de assobiar e sentiu a vibração dos dentes da faca enquanto esta se debatia com a dureza do alimento que teimava em resistir às suas investidas. Fazia um ruído surdo, abafado, que duma forma incompreensível despertava-lhe um certo prazer.
Com os olhos postos no nada, finalizou a sessão de corte e deixou cair o olhar sobre o pão fatiado. "O todo é feito de partes!". Parecia fazer sentido agora... precisava de mostrar que o todo deve ser visto nas suas partes mais básicas, que devem ser educados a olhar com atenção e não perder os detalhes que lhes seriam revelados pelas partes.
Saiu intempestivamente sem tocar em mais nada, saiu ainda com o cheiro da noite impregnado no seu cabelo longo que teimava em lhe cobrir os olhos. Dirigiu-se apressado a um supermercado local que ainda estava fechado, não havia sido cuidadoso nem metódico. Dirigiu-se com um objectivo e não preparou o caminho; serviu-lhe de primeira lição. Parou o impaciente passo atrás de passo quase ritual de tão repetitivo em frente da entrada e colocou ordem no caos. Olhou em volta para uma rua lisa e fria e avistou um café suficientemente perto para ver o supermercado a abrir. Dirigiu-se para lá, abriu um sorriso próprio dum cidadão civilizado e tentou um "bom dia" suficientemente humano para que lhe respondessem.
Vigiava o supermercado enquanto despejava um café horrível para um estômago esmagado pela ansiedade...
Hoje nascia uma nova ordem... a sua.