
Não será de certeza a última vez que sou encarado como sendo demasiado pessimista ou tendencialmente negro na minha escrita. Dou espaço para que o meu lado mais censurado tenha a sua voz, que tenha a sua expressão e que seja bem sucedido no descarregar do fardo que é o seu silêncio. Inúmeras vezes vi-me a censurar aquilo que sentia ser o que devia escrever em prol de valores que me sufocavam e me pediam para gritar mais baixinho, para evitar que usasse certas palavras ou expressões, para que fosse politica e moralmente correcto! Fiquei tão farto que quase rebentava e era engolido por camadas de hipocrisia e assim ia deixando o tempo passar e nenhuma outra letra saia deste teclado. Fiquei que tempos a fixar o monitor e a ler o que parecia nunca ter surgido da minha mente, sempre desconfiado da veracidade de tais textos.
Protestei dentro de mim contra mim! Clamei a alto e bom som a cobardia da minha atitude e senti-me quase adolescente de novo. Agora que sinto que os meus dois lados completamente distintos se tocam mais do que nunca e se definem como opostos totais, sinto-me mais rico, mais consciente da minha dualidade. Como posso permitir que o amor e a dor passeiem lado a lado num mundo só meu sem chão nem céu?
Feito de pequenos cenários ora negros ora luminosos e cheios de esperança. Deixo a luz esgueirar-se por vezes no breu, mas depressa a recolho e deixo-me nadar livremente neste ouro negro. Cada gota deste lago deitei-a eu do meu sangue, da minha alma e do meu ser, cada recanto do chão contornado pelo líquido vil deixei-o eu que nascesse, cada tronco seco e despido matei-o eu para que se completasse a decadência. Pintei com as cores mais frias e cortantes o cenário que construía para deixar o meu monstro à solta. Dei-lhe recantos e portas e labirintos e um sem fim de túneis
inacabáveis, sempre para que não se sentisse de novo amordaçado. Visitei-o vezes sem conta e sussurrou-me ao ouvido as terríveis imagens que um dia escrevi e outras que ainda não tive coragem. Ele sabe o que me tem que me dizer, sabe que eu devoro cada palavra e cada imagem e cada pensamento, sabe que eu os misturo numa fornalha de profanas chamas verdes. Dou-lhe voz e ele da-me paz...
Estamos sempre a pregar que não somo perfeitos, que temos que aceitar os outros com o que têm de bom e de mau, mas nem sequer somos capazes de o fazer connosco! Aceitem-se! Eu estou-me a aceitar.
D.M.